quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus - 2005 - Textos Marília Fleury

AUSÊNCIA
(Marília Fleury)

Essa ausência são sapatos virados,
quietos, espiando o teto,
roupas penduradas pelo avesso,
pão dormido na mesa, terço esquecido,
Dia de Todos os Santos Abandonados.

A terra do jardim é revirada, mas não existem cadáveres.
Os gatos bebem a água fria da pia e deixam,
caprichosamente, carrapichos nos lençóis.
O sol desenha listras claras nas persianas.
O menino, nesse tempo tão curto,
perdeu seu cheiro, e a menina cobre claros
pensamentos com um chapéu azul-marinho.

Os sinos da igreja arrastam a manhã,
e falam de trevas e de fulgores,
como num poema de Hilda Hilst.
Sonoridade oblonga, a inexata sensação
de não-estar me dissolvendo num cinema escuro,
num fim de tarde, entre vigílias e vidros,
obscura e silenciosa. Esperando o salvo-conduto
num convento: breve passeio dominical.


VOCÊ NÃO SABE
(Marília Fleury)

Você não sabe, mas meu olhar
persegue escuros ônix em água de anil.
E em véspera de domingo olhou bromélias
tão pacíficas quanto antigas amélias,
enquanto, albugem, um lambrusco
escorria sutil em paraíso interior
até transformar névoa em amargor.

Você não sabe, mas suas presenças lembram
delícias mínimas plenas: ciganas chinelas
havaianas, luz de abajur, a sobra da sombra
às seis da tarde, o som da palavra alcaçuz
a lima e a poesia de Annalisa Cima,
um sofá de chenille e um cão andaluz.

Você não sabe, mas drosófila é uma marca
e é uma mosca de treinada extensa memória,
e o sono súbito, incontrolável, narcolepsia,
fatos científicos, outras metáforas e teorias,
nem mesmo que quero ser um ser glacial,
quieta indultária em palácio episcopal.

Você não sabe, mas só sei dispor caracteres assim,
meio sem verve, quase claras claras em neve,
quase inconsútil, minimamente raro marfim,
escrevendo leve um vento minuano em breve,
para levar sussurrante lasso desassossego,
que levanta contente ledo litígio em torno de mim.


E-MAIL
(Marília Fleury)

“Fulano é um chuchu”,
digitei com deleite,
Você responde, certeiro
como Fu Manchu,
esclarecendo que este
é um termo de resgate
de um tempo que não
mais existe.

Explico em francês:
é como mon petit chou.
Algo carinhoso, tão usável
quanto pó-de-arroz Promesa
e Alfazema Garrão,
que deixam no ar um cheiro de ervas
em mês de escuridão.


NATAL
(Marília Fleury)

O Natal caiu numa sexta-feira.
Ele caiu inapelavelmente
sobre nossas cabeças perplexas,
que se balançam frouxamente, movidas
pelo vinho, reminiscências e pequenos sustos.

A chuva cumpre pontualmente sua probabilidade natalina
contra os acontecimentos improváveis materializados,
fantasmas provisoriamente enxotados em nome da paz,
cachorrinhos ganindo embaixo do tapete, suavemente
chutados por sapatos pretos pontudos.

A brancura do arroz espiada por esparsas castanhas,
a transparência do vinho na (trans)aparência do copo,
no escuro molhado além do vidro: plantas, pilotis,
primícias de primeiros tempos, prática da plumagem
festiva para uso particular, partilhada parcialmente.
Non plus ultra.

Marília Abadia Fleury. Nasceu em Minas, mora em Goiânia. É separada e tem dois filhos, uma menina de um menino, de 14 e 11 anos, respectivamente. Foi funcionária pública durante vários anos, depois mudou-se para Bragança Paulista, interior de São Paulo, onde se dedicou, quase que exclusivamente a cuidar dos filhos. Durante um longo tempo, lia para os filhos poemas, histórias e tudo que pudesse interessar a eles. Lia também para si mesma. É professora universitária e leitora voraz e inveterada, cinéfila incurável, artista frustrada.

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